“ ...E assim
escrevo, querendo
sentir a natureza,
nem sequer como um
homem,
mais como quem sente
a natureza,
e mais nada”
Fernando Pessoa
O Preto desceu o caminho até o rio com baldes vazios
para encher, iria levar de volta para o casebre onde o esperava paciente, sua musa, aquela preta de cabelos
roliços e brilhantes era uma rainha
para os olhos dele. Enquanto ele descia o caminho de pedras, as pedras da beira
do rio desciam, acompanhando o rio como uma rota particular das pedras, logo as
pedras que exercem a função medíocre de seguirem paradas, com sol, garoa e água
.... (a transformação da pedra é lentíssima, porém marcante e profunda).
O Preto observava com atenção do canto do bem-te-vi, até
o arrastar de uma lagartixa que o admirava curioso, mexendo a cabeça num sinal
positivo a tudo. Quando respirava fazia questão de encher bem os pulmões de ar,
repetia o ritual de abrir bem as narinas e aspirar para dentro dos seus
pulmões, a liberdade, a pureza e a divindade daquele lugar, e num movimento
sutil e relaxado deixava que escapulisse do seu peito, naufragado de lembranças
tristes não tão somente o ar, não puro e simplesmente o ar, mais tentava expulsar
todo o peso da sua alma a dor, e o prazer de sua liberdade. A tudo isso o Preto
observava com atenção, como reagia seu corpo e todos os seus sentidos (internos
e externos).
Ele andou descalço entre as árvores, as flores
nativas, as ervas medicinais, as alfazemas de caboclo e caminhou entre as
borboletas e os pássaros... era como caminhar no paraíso. (se existisse). A
esta altura da positividade da lagartixa curiosa, ficava unicamente a lembrança
rápida da sensação que o homem tinha de que ela o entendia, profundamente.
QUEM SOU EU ?? Se perguntou durante muitos passos...
enquanto pisava, rompia pedaços de gravetos finos, frágeis sementes, e folhas
secas, que não protestavam sob aqueles pés grandes e firmes, talvez a natureza
daquele lugar conhecesse tão intimamente aqueles passos que, honrosamente caiam
na terra para servir de consolo para aqueles pés de coração triste.
O Preto se sentou numa pedra grande na beira do rio, e o
escutou em silencio.... um minuto, dois, cinco... ficou um tempo precioso de
introspecção e reflexão. E depois de um tempo, verificou que o rio nada fez pra
consolar aquela tristeza, nem tampouco o sol brilhou mais especial, nem o
bem-te-vi o dirigiu um canto mais amoroso. Tudo seguia seu curso natural, e
poeticamente normal, as pedras, o rio, o sol, o bem-te-vi...
Ele olhou para a pedra onde estava sentado e se viu num
reflexo imponente da água, e viu, no reflexo do reflexo dos seus olhos, outra
vez o mesmo rio, e instintivamente deu sua contribuição carinhosa e honrada, à
aquelas águas correntes como o tempo e como a vida, desaguando de dentro de si
para o rio, ele lembrou da sua luta pela
libertação do seu povo, e ele chorou pelos seus falecidos ancestrais que
nasceram livres, e chorou pela sua nação arrancada de suas raizes, e pela lembrança
da dor do banzo, e ele chorou, com tanto amor, que sua tristeza se transformou
em água, e sua alma voltou a ser natureza. A Pretinha de cabelos roliços e
brilhantes nunca mais viu aqueles pés tristes, que agora já não eram nem pés,
nem dor, nem pretos, nem tristes...
LUZ MARQUES
05/12