quarta-feira, 17 de junho de 2015

OS PÉS TRISTES




“ ...E assim escrevo, querendo
sentir a natureza,
nem sequer como um homem,
mais como quem sente a natureza,
e mais nada”
Fernando Pessoa

    O Preto desceu o caminho até o rio com baldes vazios para encher, iria levar de volta para o casebre onde o esperava  paciente, sua musa, aquela preta de cabelos roliços  e brilhantes era uma rainha para os olhos dele. Enquanto ele descia o caminho de pedras, as pedras da beira do rio desciam, acompanhando o rio como uma rota particular das pedras, logo as pedras que exercem a função medíocre de seguirem paradas, com sol, garoa e água .... (a transformação da pedra é lentíssima, porém marcante e profunda).

    O Preto observava com atenção do canto do bem-te-vi, até o arrastar de uma lagartixa que o admirava curioso, mexendo a cabeça num sinal positivo a tudo. Quando respirava fazia questão de encher bem os pulmões de ar, repetia o ritual de abrir bem as narinas e aspirar para dentro dos seus pulmões, a liberdade, a pureza e a divindade daquele lugar, e num movimento sutil e relaxado deixava que escapulisse do seu peito, naufragado de lembranças tristes não tão somente o ar, não puro e simplesmente o ar, mais tentava expulsar todo o peso da sua alma a dor, e o prazer de sua liberdade. A tudo isso o Preto observava com atenção, como reagia seu corpo e todos os seus sentidos (internos e externos).

    Ele andou descalço entre as árvores, as flores nativas, as ervas medicinais, as alfazemas de caboclo e caminhou entre as borboletas e os pássaros... era como caminhar no paraíso. (se existisse). A esta altura da positividade da lagartixa curiosa, ficava unicamente a lembrança rápida da sensação que o homem tinha de que ela o entendia, profundamente.
QUEM SOU EU ?? Se perguntou durante muitos passos... enquanto pisava, rompia pedaços de gravetos finos, frágeis sementes, e folhas secas, que não protestavam sob aqueles pés grandes e firmes, talvez a natureza daquele lugar conhecesse tão intimamente aqueles passos que, honrosamente caiam na terra para servir de consolo para aqueles pés de coração triste.

     O Preto se sentou numa pedra grande na beira do rio, e o escutou em silencio.... um minuto, dois, cinco... ficou um tempo precioso de introspecção e reflexão. E depois de um tempo, verificou que o rio nada fez pra consolar aquela tristeza, nem tampouco o sol brilhou mais especial, nem o bem-te-vi o dirigiu um canto mais amoroso. Tudo seguia seu curso natural, e poeticamente normal, as pedras, o rio, o sol, o bem-te-vi... 

    Ele olhou para a pedra onde estava sentado e se viu num reflexo imponente da água, e viu, no reflexo do reflexo dos seus olhos, outra vez o mesmo rio, e instintivamente deu sua contribuição carinhosa e honrada, à aquelas águas correntes como o tempo e como a vida, desaguando de dentro de si para o rio,  ele lembrou da sua luta pela libertação do seu povo, e ele chorou pelos seus falecidos ancestrais que nasceram livres, e chorou pela sua nação arrancada de suas raizes, e pela lembrança da dor do banzo, e ele chorou, com tanto amor, que sua tristeza se transformou em água, e sua alma voltou a ser natureza. A Pretinha de cabelos roliços e brilhantes nunca mais viu aqueles pés tristes, que agora já não eram nem pés, nem dor, nem pretos, nem tristes...

 LUZ MARQUES
 05/12


 





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